Chamada para o Dossiê: Entre variegação, negação e constituição. Refundar o pensamento urbano-regional latino-americano
Chamada para o Dossiê: Entre variegação, negação e constituição. Refundar o pensamento urbano-regional latino-americano
Coordenação: Jeroen Johannes Klink (UFABC), Victor Ramiro Fernández (CONICET / Universidad Nacional del Litoral) e Guillermo Jajamovich (CONICET / Universidad de Buenos Aires)
Data limite para submissão: 30/04/2025
Publicação: v.28, 2026
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Entre variegação, negação e constituição. Refundar o pensamento urbano-regional latino-americano
O pensamento latino-americano passou por um momento áureo dos anos 1950 a 1970/1980. Gerou uma reflexão inovadora a respeito das relações imbricadas entre as espacialidades contraditórias do subcontinente e as dinâmicas do sistema capitalista em escala global. A efervescência teórica deste período contribuiu para compreender, a partir das chaves analíticas do estruturalismo latino-americano, do pensamento Cepalino e das perspectivas dependentistas, fenômenos como as crescentes disparidades macrorregionais, o crescimento econômico sem desenvolvimento com degradação socioambiental, assim como o nexo entre urbanização e industrialização com baixos salários e a favelização das cidades, entre alguns exemplos. O projeto intelectual latino-americano não apenas apresentou uma crítica contundente das estruturas econômicas e políticas em vigor no sistema mundo, mas vislumbrou estratégias alternativas de desenvolvimento para a região.
O referido projeto perdeu folego. Ao mesmo tempo, as multifacetadas transformações que ocorreram nas últimas décadas do século XX desencadearam debates acadêmicos em torno de chaves analíticas com tendências totalizantes – por exemplo, neoliberalização; financeirização; emergência de novas tecnologias de comunicação e informação; plataformização das economias urbanas e regionais; disseminação de riscos socioambientais em escala planetária – que nem sempre levaram em consideração as especificidades geográficas e históricas da América Latina. Para agravar este cenário, a crescente hierarquização da divisão internacional do trabalho intelectual consolidou uma infraestrutura geoeconômica e política para a produção, circulação e apropriação do conhecimento que privilegiasse os centros acadêmicos dos países centrais – principalmente os localizados no circuito anglófono – , com menos espaços de articulação para uma reflexão desde a América Latina.
Deste panorama emerge uma agenda de pesquisa com traços de bipolaridade. De um lado, uma literatura que adota uma perspectiva de variegações às tendências macroestruturais para compreender as especificidades geográficas e históricas das transformações em curso no espaço urbano e regional no Sul Global. Encontramos variações ao tema – p.ex., a financeirização subordinada; a transformação variegada da espacialidade e escalaridade do nacional-desenvolvimentismo latino-americano no contexto da neoliberalização dos espaços em curso na escala planetária etc. – mas o denominador comum deste programa de pesquisa é a possibilidade de construir diálogos entre o Norte e Sul Global a partir destas trajetórias espaciais diferenciadas. De outro, uma perspectiva de negação de teorizações e narrativas totalizantes que visam enquadrar as particularidades e nuances que marcam os territórios do Sul Global. De acordo com este pensamento, o risco das chaves analíticas macroestruturais é de consolidar “ideias fora do lugar” (Schwartz, 2014). Um exemplo emblemático é o conceito de neoliberalização, associada à ideia do desmantelamento do Estado de Bem-estar social, considerando que, diferente do Keynesianismo espacial dos países centrais, no nacional-desenvolvimentismo latino-americano o Estado nunca assumiu o risco social e constituiu um fundo público, como salário indireto, para garantir a coesão socioespacial. A perspectiva da negação, ancorada no pós-estruturalismo, problematiza conversações comparativas em escala global e postula a necessidade de ampliar as geografias da teoria (Robinson, 2002; Roy, 2002).
Estas posições epistêmicas entrincheiradas travaram a agenda de pesquisa. No entanto, a premissa desse dossiê é que o impasse pode ser produtivo, ou seja, o embrião para a constituição de novas chaves teóricas que buscam “refundar” o pensamento latino-americano perante os múltiplos desafios do século XXI (Brandão; Fernández; Ribeiro, 2018). Um projeto político-intelectual desta natureza desde o Sul Global e da América Latina aposta no cosmopolitismo e no diálogo com autores alinhados do Norte. Para tal, apresentam-se dois pilares.
Primeiramente, a exploração de epistemologias da diferença que, possivelmente, vão além da variegação ou negação para a constituição de novas categorias analíticas para avançar no campo dos estudos urbanos e regionais desde América Latina e torná-lo verdadeiramente mais global e plural. Nesta perspectiva, o reconhecimento das especificidades dos lugares não nega transformações mais amplas, mas não as representa, a priori, como uma variedade das espacialidades do capitalismo geral. Ao mesmo tempo, a leitura do particular contribui para construção teórica no nível intermediário – sempre de forma parcial, preliminar e ajustável à luz de pesquisas empíricas mais detalhadas (Brandão et. al., 2024) – a respeito das dinâmicas urbanas e regionais mais amplas. Exemplo paradigmático deste exercício epistêmico, em outros tempos, foi a constituição do ornitorrinco do Francisco de Oliveira a partir do entrelaçamento do moderno com o atrasado.
Outro pilar é a articulação entre a reflexão crítica original e a transformação da práxis, ou seja, a fenomenologia do lugar específico não apenas pode constituir o embrião de uma compreensão alternativa (ao mesmo tempo dentro e fora das dinâmicas sistêmicas), mas pode também contribuir para o desenho de estratégias espaciais “insurgentes”, para utilizar o vocabulário contemporâneo, isto é, contra hegemônicas, transgressivas e imaginativas em relação à ordem espacial no mundo (Miraftab, 2009). Não obstante a atuação e a organização territorial “realmente existente” do Estado desenvolvimentista durante o século XX ter sido, na maioria das vezes, bastante contraditória, o pensamento espacial latino-americano, por si só, incorporava este viés insurgente. Apontava estratégias alternativas de desenvolvimento – industrialização; substituição das importações; políticas regionais de complementaridades e solidariedade territorial etc. – e novas práticas espaciais reconhecendo o direito à cidade – por exemplo, por meio da urbanização das favelas.
Considerando este desafio de “refundar” o projeto político-intelectual latino-americano perante os desafios no campo dos estudos urbanos e no planejamento urbano e regional no século XXI, convidamos artigos estritamente teóricos e/ou teórico-empíricos que:
- Estabelecem uma conversação epistêmica constituinte com as chaves teóricas “macroestruturais” adotadas para explicar as espacialidades e estatalidades do capitalismo contemporâneo, em geral, e da América Latina, em particular (por exemplo, financeirização; neoliberalização; digitalização e plataformização das economias urbanas, regionais e nacionais; planetarização dos riscos e desastres socioambientais etc.);
- Procuram, a partir de uma investigação de determinadas singularidades na produção e apropriação do espaço urbano e regional na América Latina (por exemplo ilegalidade, informalidade, irregularidade, e os entrelaçamentos com os espaços “legais”, “formais” e “regulares”; rentismo e patrimonialismo; colonização do pensamento e das práticas espaciais; racismo e injustiça ambientais etc.), avançar na geração de novos conhecimentos no campo dos estudos urbanos e regionais desde a América Latina;
- Avancem na direção da compreensão da constituição, circulação e apropriação de teorias, políticas, modelos urbanos (por exemplo, a tese do capital morto do de Soto (2000)) e práticas espaciais (formas de regularização fundiária) no cenário internacional e seu entrelaçamento com a produção multiescalar e relacional do espaço urbano e regional na América Latina.
- Tentem analisar, em perspectiva histórica, momentos e episódios na construção de teorias urbanas e regionais que tematizem seu caráter situado, seu caráter latino-americano e a maneira pela qual buscaram intervir no contexto em que surgiram.
Referências:
BRANDÃO, C.A.; SANFELICI, D.; MAGALHÃES, F.N.C.; PERNASETTI, F.; SIQUEIRA, H.; KLINK, J.; TONUCCI, J.; SOUZA, M.B. de. Geografias econômicas variegadas do neoliberalismo e do desenvolvimento desigual. Uma introdução às contribuições de Jamie Peck. Revista Geografias, v. 20, n.1, 2024. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/geografias/article/view/56046. Acessado: 8 dezembro 2024.
BRANDÃO, C.A; FERNÁNDEZ, V.R.; RIBEIRO, L.C.Q. (Orgs). Escalas espaciais, reescalonamentos e estatalidades: lições e desafios para América Latina. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles/Letra Capital, 2018.
DE SOTO, H. The mystery of capital. New York: Basic Books, 2000.
GORELIK, A. Gorelik, A. La ciudad latinoamericana, una figura de la imaginación social del siglo XX. Buenos Aires: Siglo XXI, 2022.
MIRAFTAB, F. Insurgent Planning. Situating Radical Planning in the Global South. Planning Theory, v. 8, n.1, p. 32-50.
ROBINSON, J. Global and world cities: a view from off the map. International journal of urban and regional research, 26(3), 531-554, 2002.
ROY, A. Roy, A. The 21st-Century Metropolis: New Geographies of Theory'. Regional Studies, 43(6), 819-830, 2002.
SCHWARTZ, R. As ideias fora do lugar. São Paulo/Rio de Janeiro: Penguin/Companhia das Letras, 2014.